Dissolvência - Capitulo VII (A vida depois da morte, ou a morte depois da vida?)


Capitulo VII - A vida depois da morte, ou a morte depois da vida?




Julgava ter chegado a derradeira hora, a hora que assinalava a pendência do fio de vida a que se sustinha, fragmentado em mil partículas de nervos contraídos pelo corpo no enlaço do fugidio momento.
Fugir do espaço e do tempo, fugir de quem se punha diante da prescindível vida que tinha, fugir de si, sim, sobretudo fugir de si mesma.
Nunca antes, em todos os tempos em que assim pensara, nos abandonos e nas partidas, nas mentiras embrulhadas, nas traições desenfreadas, nunca a emergência de se evadir, no culmino das afrontações, se colocara com a força e a urgência errática presente, na presente conjuntura.
O choro compulsivo diante das horas passadas ressequíam a pele crepitante no conjunto das tristezas e dos choques ainda em abalo no corpo, demasiado fustigado para as suportar.
Os gritos de Nicole na descrença inicial das palavras cruas da verdade quase enterrada, descoberta na perfídia inconfidência de quem julgava poder confiar a sua vida, o amor perdido para sempre no catastrofismo do destino perverso que não a largava, que a assombrava no tumulto da alumiação, de onde Jade implorava, que a mesma luz não chegasse, onde se tinha agarrado a essa esperança  no anseio desmesurado, quase ingénuo que assim se fosse suceder, que até o seu desencarne acontecer pudesse viver, existir, em breves segundos de paz.
Em breves segundos onde uma pomba branca voejasse diante dos olhos eternamente tristes, complacentes com o vislumbre da esperança do resgate.
Como tinha sido incrédulamente crédula, deveria de ter sabido melhor que isso, não teriam sido vinte e dois anos de infelicidade atrás de infelicidade suficientes para o saber?
Aparentemente não havia absolutamente mais nada a apreender do mundo que temerariamente a odiava, que com todos os místicos poderes, a impeliam na expulsão do reino da realidade em que fora posta , sem pingo de amor, sem nada a não ser destruição a que se agarrar, tudo onde as delicadas mãos pousavam acabavam no infortúnio, desmanchadas, padecidas no toque da desgraça, e era sua culpa, toda sua culpa, assim ser, assim se permitir ser.
Tudo acabaria brevemente, enquanto as pernas conseguissem engrenar os movimentos dos passos alargados, acelerados á máxima potência que conseguia atingir, na célere vontade do destino encaminhado.
Estava quase, só teria de suster um pouco mais a sofreguidão inundada pela humidade da noite nos pulmões submergidos de cansaço. 
A estrada da marginal repleta de movimento do tráfego diário, continuava como sempre repleta de efervescentes vontades, irasciveis em chegar com rapidez ao destino do quotidiano, fosse para retomar ao lar no fim das horas de trabalho, fosse para ingressar nos mistérios da noite procurados, nas diversões e lascivos momentos onde se perdiam felizes no contentamento da carne endividada pelo juízo da alma desconcertada.
E ainda bem que as circunstancias, por uma vez na sua vida, no limite da mesma, se denotavam como esperava, como necessitava que permanecessem fieis na constância da rotina alargada.
Jade estacou por breves minutos no fim da calçada segura que delimitava o limite do alento do corpo denegrido, enfuscado nas sombras que lhe estendiam prontamente a mão.
Inalou o ar cortante com profundidade, sentido cada átomo do sopro inalado a apertar-lhe as narinas, sentindo com um vibrante regozijo o formigueiro da brisa gelada no corpo, acariciou o tecido do vestido envergado, com a brevidade do deleite da vaidade.
" Desaparece! Desaparece, ouviste bem? É bom que te escondas na tua própria porcaria e que morras lá! Ouviste? Desapa..RECE!"
O brado derradeiro em fúria de Nicole ecoou no calibre supremo da mente paralisada no momento do julgamento final, a imagem da amiga a ser arrastada por Débora para fora do cemitério com o corpo contorcido em raiva latejante, raiva essa, cuja transgressão caia toda sobre os ombros de si mesma e da sua aberrativa natureza que precisava de cessar, que precisava de ser exterminada com toda a potência da extinção. 
Duas lágrimas verteram-se no compasso coordenativo da tragédia, de que talvez um dia escrevessem, no lirismo da beleza que se retira do cataclismo da vida terminada, das vidas cruzadas e desfasadas, num instante, em ínfimas desgostosas cinzas.
Humedeceu os lábios no seu próprio sal e deixou que os pés ganhassem vida própria no caminho envedrado, sentiu as luzes a incandescer os olhos e fechou-os no apogeu da derradeira hora em consonância com a sinfonia que eclodia de dentro de si.
"Quero ver a pomba..a pomba.." imaginou-a minuciosamente no negrume dos olhos cerrados, assentidos com a estridência do buzinar que rebentava a sua audição, a estridência e a luz branca próxima, tão próxima...


***

" Eu disse que tinhas de voltar...Jade por favor, acorda...volta!" 


 Jade levantou-se rompante desorientada, arquejante em tentar perceber onde se encontrava. 

Olhou a sua volta na parca luz que iluminava o estranho espaço onde se encontrava. Estava reclinada numa cama de sumptuoso porte, estava vestida como se lembrava...sentia o ar e o descompasso do coração no bombear desenfreado do sangue fervilhante de medo e anseio. Seria possível...  Como estava ali? Como estava viva? Seria isso mesmo verdade ou não passaria de uma projecção horrível no limbo da suposta morte?
Onde estava? Onde estava?


Sarah Moustafa

Comentários

  1. Fascinante tua maneira de escrever nos prendendo a narrativa. Tua historia é triste, mais sabes relatar os fatos de maneira maravilhosa e inteligente. Vamos ver no que vai dá... Estarei aguardando. Bjus querida

    ResponderEliminar
    Respostas

    1. Ainda bem que conto com a Nádia para seguir esta historia especial!
      Beijos*

      Eliminar
  2. Sarah, como sempre deixas o leitor navegar nas linhas e consegues levá-lo na direção que escolheste.
    É sensível e belo. Perfeito!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares