Dissolvência- Capitulo I




Prólogo

Quando reprimimos a existência da essência, do propósito fiel da ascensão, naturalmente alimentamos o fosso.
Cavamos o buraco cuja profundidade ecoa na extensão da alma. 
Corrompemos a natureza da existência, cativos nas frivolidades do espaço circundante.
Fechamos os olhos na carência do conforto que se aninha na doçura maquiavélica espelhada nos tentáculos imperceptíveis, que nos amarram á incredulidade de sermos os nossos próprios inimigos.
Os monstros que tememos desde a tenra idade estão cá dentro, bem interiorizados, incrustados ao milímetro da precisão.
De tal modo, que na ousadia da afirmação da própria vontade, do pensamento límpido, se inicia a revolução.
Se inicia, a tremenda Dissolvência.






Capitulo I

Dúvidas
 São fiéis
Até na infidelidade


Jade impacientava-se, e isso não era nunca, mesmo ao âmago da negação, tremendamente negativa, um bom agouro.
Os 22 anos de existência assim o comprovavam, pois na aparente serenidade que usualmente a revestia, a explosão impulsiva da atitude directa a uma manifestação espontânea, era de tal raridade, como de degustar favas á refeição.
E agora que reagia abruptamente á situação presente, delongou-se nesse pensamento, nessa interrogação da falta de impulsividade no cerne da personalidade.
Talvez porque fosse uma maníaca do controlo que irremediavelmente procurava estruturar as coisinhas do quotidiano na perfeição possivelmente executável.
Ou talvez porque no desespero da apreciação geral, da inserção do molde esperado, acomodava-se ao silêncio das próprias vontades.
Teria de pensar mais tarde nos porquês da inexistência da acção recorrente, porque naquele exacto segundo de momento teria, com bom grado ou não, de agir.
- Não consigo… Não quero falar! - Explodiu na improbabilidade do costume, enquanto apressava o passo em direcção ao carro bastante mal estacionado. A condução muito pouco praticável no aperto da cidade. A condução atrapalhada e insegura, bem reflexiva de si mesma.
- Espera, não me deixaste acabar a conversa! Como podes reagir assim sem saber o resto da história? – Interrogou quem em seu encalço seguia, o robusto terrível Bruno. O homem iniciador daquilo a que chamamos de catastroficamente errado. 
A sua erroneidade consista na infidelidade tangível do compromisso inerente entre duas pessoas, uma relação, ou naquilo que se concluía agora, por várias.
 Jade inspirou o entardecer gélido, sazonalmente invernoso e triste. 
Triste como agora os olhos se espelhavam, os olhos imensamente grandes, os olhos de avelã, como alguém carinhosamente, em tempos idos os adjectivara...
A tristeza do triste fado em que se enrolava constantemente, a incerteza da certeza de sentir.
O pesar não era a traição de Bruno, não consistia nas demandas românticas da monogamia, mas na inexistência da conexão entre dois seres, onde aí sim, a deslealdade magoaria em toda a extensão possível e imaginária. Onde as entranhas ebuliriam num impacto transcendente á medida do amor, ao jus da palavra poética, mas tão longínqua para quem agora deixava uma lágrima, apenas uma gotícula da imensidão suposta, correr pelo rosto de tez dourada.
Bruno fitou a imagem também em pesar, pois aquela rapariga era a mais complexa com que alguma vez se tinha envolvido, aquela que lhe exigia as energias do além, no exercício da descoberta de si mesmo, aquela que lhe cuidava de todos os chatos detalhes diários e ainda assim permanecia impecável na beleza correspondente, aquela que ainda bela era a mais inteligente, aquela que acreditava no bem onde nem ele mesmo conseguia afiançar.
 Aquela que demonstrava uma luz radiosa em toda a sua construção, mas que por desalento da criação se impedia de brilhar. 
O único e suficiente problema para a relação não funcionar, a desconexão total da mente e do corpo e de se entregar ao seu domínio.
- Não precisas de dizer nada, não precisas de explicar… Porque... – Hesitou nas palavras grotescas que vociferavam, presas por um fio, na língua hesitante. Porque simplesmente não me importa!
- Não te importa? – Bruno carregou o semblante desconcertado pelas vagas respostas que recebia. – Como assim não te importa? Jade, eu sei que é muito para aceitar, mas se trabalharmos para isso, a nossa relação ainda pode funcionar! Tu sabes que sim, és a própria a dizê-lo, só falta ….
- Comprometermo-nos… - por fim o diálogo caminhava no trilho correcto, no trilho onde ela não queria chegar, onde teria de lidar com a sua própria incompreensão, mas a verdade saiu-lhe num sussurro ténue, quase inaudível, Quase…

***
As horas no Inverno encurtavam e a noite e o seu breu cobriam tal, véu encantado, grande parte do dia.
Mas para Jade as horas, permaneciam no mais do tudo do mesmo, que diferença fazia se os ponteiros do relógio assinalavam um tempo especifico?
Para ela era tudo igual, se era dia ou se era noite, se fazia frio ou calor, as simplórias questões do ordinariamente comum, não lhe interessavam e sobretudo não naquele dia. 
No dia, em que por mais uma vez, uma relação terminou, em que por mais uma vez se sentiu aliviada por assim acontecer.
Mas esse alívio era tumulto intempestivo da revolta interior. 
A circulação que não seguia no trilho das veias supostas.
O AVC culminante da melancolia do pensar e nada mais do que isso, sempre envolta na mente que não sossega e que por isso paga caro, paga com a carência manifesta de um corpo que não se conecta. Que não se amarra nos laços cor-de-rosa que o universo da paixão lhe deveria provocar.
O olhar cor de mar, do agora ex-namorado, embruteceu no gélido momento, em que a verdade ascendeu na boca, que a tormenta não conseguia mais segurar. E a silhueta do homem com que se compartilhou durante meses partiu. Todos partiam, seguiam as vidas com uma férrea vontade, com certa constância, que invejava tremendamente. 
Todos partiam, menos ela, cativa na eternidade da inercia, cativa na onda que a capturou.
Estacionou o veículo na garagem do T1 onde residia, mas deixou-se estar na penumbra. Não conseguia sair, não conseguia retomar a mesma rotina, não naquele momento em que as forças careciam, não naquele momento onde apenas queria derramar o que por seu era direito, derramar a agua que inundava muito mais dos que os olhos.

Sarah Moustafa



Comentários

  1. Sarah, fiquei surpreso com esse texto. Percebia o seu talento ao ler suas postagens anteriores, mas quando li isso, não conseguia me distrair com nada (barulhos, luzes, frio, calor...) fiquei preso à estória e não querendo que terminasse. Parabéns pela sua excelente capacidade de escrever.
    Bjs
    Manoel

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    1. Manoel ainda bem que ficou surpreso! Gosto de inovar e surpreender!

      Bjs Sarah

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  2. Querida amiga Sarah !

    Perdoa-me a invasão do seu espaço, mas temos amigos comuns. Seu Blog. é lindo e seus textos mais ainda. Arte literária pura, da melhor qualidade. Adorei-os. Está de parabéns. Já sou seu seguidor.
    Beijos de luz !

    POETA CIGANO - 09/11/2012

    http://carlosrimolo.blogspot.com

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    1. Olá Carlos!
      Seja Bem Vindo, Obrigado pelas belas palavras!

      Volte sempre

      Beijos

      Sarah

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  3. Sarah,
    Este primeiro capítulo anuncia uma história profunda. Só hoje consegui vir ler as tuas publicações dos últimos dias e não quis fazer batota. Leio a história na ordem dos capítulos publicados.
    Estou a ser levada por ti aos confins da dissolvência..
    Vou já ler os seguintes e descobrir o caminho.

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    1. Olá Dulce!

      Já tinha sentido a sua falta por aqui!

      Ainda bem que está a gostar! é importante para mim ter essa noção!
      Bjs

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  4. Essa sua narrativa promete momentos surpreendentes e vc consegue, magistralmente nos prender, não nos permite tirar os olhos da tela. Parabéns, tão talento impressiona. Eu também tenho um blog de contos, quando puder passa por lá, ficaria muito feliz se me desse sua opinião em alguns dos meus contos. Grande bj
    Link: http://soltandoamente.blogspot.com.br/

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  5. irei lá visitar com certeza Nádia!

    Grande bj

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  6. Uma bela introdução inserindo o leitor e criando imagens com sua perfeita descrição na intrigante historia.
    Voltei para me jogar nas suas inspirações.
    Parabens Sarah.
    Meu terno abraço.

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