Dissolvência- Capitulo V (O Luto que não se enterra)


Capitulo V- O Luto que não se Enterra


O som dos saltos das suas botas , a cada arrasto de passo que dava, era a única certeza permanente que o seu cérbero e afins racionais, conseguiam ter em como estava realmente ali, em como caminhava no seu corpo de sempre, em como era tudo real.
O hospital, o cheiro característico do mesmo, as pessoas doentias que gemiam de dor em todos os corredores, dispostos em macas descuidadamente colocadas, os enfermeiros atabalhoados, o som da sirene da ambulância, que minuto sim minuto não ecoava, alarmando os que ao serviço competiam, para mais umas horas de frenético trabalho.
Jade daria tudo, totalmente tudo de si, para sentir uma ponta de frenesim no seu corpo completamente aturdido pelas horas passadas, pela sucessão de acontecimentos, que ainda saboreava como irreais, fantasmagoricamente irreais, permanecia num limbo confuso perpétuamente distante de onde de facto toda a sua constituição de mulher se encontrava.
A náusea armazenada entrava em duelo com a sua vontade de a reprimir, como penitência devida do sofrimento que estava a possuir com o poder tenebroso de controlar tudo no seu sistema, queria deixar-se ir, deixar-se assomar por essa mesma penitência, onde o flagelo da dor teria que recolher as culpas alheias no julgamento devido na hora da redenção.
Encostou-se por segundos ao corrimão das escadas que descia, cujos degraus se reproduziam aos olhos inchados, num caminho que esperançava ir de encontro ás suas aspirações. Ir de encontro a ele...
Mas a presença distinta da figura de Nicole abraçada , aquilo que lhe pareceu, uma multidão de gente, deitavam por terra os seus anseios desesperantes, o desejo da alternativa de um mundo onde pudesse ter apenas uma folha em branco por onde recomeçar o esboço da sua história malograda.
Sentiu uma imensidão de olhos cravejados na sua figura descendente, nas pernas tremulas, que desciam, sem saberem como, cada degrau com a iminência do seu desfalecimento. E queria tanto que tal acontecesse, que o seu corpo arranjou as formas mais inusitadas de a manter de pé, porque esse seria o seu verdadeiro tormento, a penitencia que tanto queria seria aquela, a de ter de lidar com todos, com Nicole em particular, no anuncio expectante das vidas diante de si, que carregavam um resto de esperança, que resplandecia na expectativa em si depositada. Antes de alcançar com o pé o ultimo degrau, baixou o rosto perante todos os outros e pressentiu, ainda que sem a imagem nos olhos, que todas as outras cabeças se descaiam por igual na  inebriante certeza do corpo extinto de vida, extinto da alma de Gabriel Valadares.

***
Débora, uma amiga de longa data, de Jade e de Nicole, pertencente ao grupo Irmãmente formado das três jovens que se comportavam como verdadeiras irmãs de sangue, enlaçadas no juramento da amizade fidelizada ao longo de mais de dez anos, estava ali presente como o pilar fundamental que sustinha o desabamento das vidas acometido pela perda de um dos elementos fundadores. Um dos elementos que tinha permitido o sucesso da amizade, pelos cenários mais turbulentos da mesma, em que o seu despenhar, por momentos, parecera realmente concretizavel. Com Gabriel presente jamais tal havia sido possível,  sempre pronto a resgatar a união, que solenemente acreditava, ser vital para a felicidade e equilíbrio das três vidas cruzadas pela sensacionalidade do destino, do cosmos transcendente que revolvia as partículas do universo, nelas compostas, com a maestria inalcançável.
Pelo menos era nisso que Débora misticamente acreditava, porque senão acreditasse nada mais faria sentido.
Ao ver Nicole e Jade na lástima esperada sabia que competiria a ela equilibrar os pratos descompensados e , que suspeitava, em breve piorar.
Apenas 24 horas após a fatalidade que a trouxera de volta ao centro do país e ao centro de si mesma, adivinhava as proporções que a morte do pai teria em Nicole, sabia com a clareza da nascente o amor incondicional que esta nutria por ele, sobretudo após a morte da mãe , falecida da doença vil dos tempos modernos, há apenas quatro anos, ainda em processo de cicatrização dessa atrocidade teria de lidar já com outra, com amplitude da força do inesperado que fora.
Todos julgavam o senhor Valadares nas terras alemãs, onde era suposto estar, na corporação milionária da industria farmacêutica a que tinha sido recrutado, exactamente após o falecimento da mulher, há mil quatrocentos e sessenta dias atrás, fora esse o tempo decorrido desde que os seus olhos azuis celestiais se tinham prendido nos dele, e que por ironia da calamidade, tinha sido também no dia de um enterro, para onde agora se dirigia, o espaço onde haviam trocado as derradeiras palavras.  Recordou-as como uma melodia trágica mas bela na sua mente optimisticamente idealista.
- Débora...eu sei que a Jade te confidenciou ...
- Não precisamos de ter esta conversa Gabriel, a sério... - tentara fugir do dialogo embaraçoso e comprometedor que estava prestes a iniciar, mas como poderia fazê-lo, sem deixar a curiosidade assombrosa, tomar grande parte dos seus sentidos, a curiosidade e uma infame necessidade de perceber em que contexto emocional, o pai de uma das suas melhores amigas, de luto pela mãe ida e enterrada naquele dia, se encontrava, se não fosse o seu interesse manifesto no campo da psicologia, que seria o curso pelo qual iria enveredar em Setembro, não fosse tão proeminente no campo de acção inexistente, pois tudo lhe sorvia o interesse, Tudo.
- Precisamos sim, por favor senta-te. - pediu-lhe educada e seriamente o homem que sempre se habituara a ver de expressão leve e feliz. Tempos esses definitivamente idos. Débora sentou-se na cadeira confortável do escritório/biblioteca onde se encontravam, puxando o elegante rabo de cavalo, de cabelo flagrante na tonalidade ruiva de que era feito, para trás. Fitou o no silêncio do entardecer ouvindo apenas os murmúrios das vozes que conversavam por toda a casa na recepção dada após o funeral.
Não espero que compreendas aquilo que te estou prestes a dizer, talvez ainda nem eu perceba bem a dimensão daquilo que se passa, mas preciso que escutes com atenção. Daqui a quatro anos, e somente ai, preciso que parta da tua boa vontade o sucesso da tarefa que te vou revelar.
Tarefa?  - Débora carregou o pálido semblante céptica no encaminhar da conversa que lhe parecia demasiado surreal.
- Sim, uma tarefa. - reafirmou abrindo a gaveta da sua secretária sem deixar de a olhar...
                                                                  ***
A ruiva vibrante, alta na constituição que lhe fora concedida de pernas longas, tremendamente irresistíveis  ao mais comum mortal, estacionou o carro, saindo do veiculo rapidamente. Ajustou o vestido negro que envergava elegantemente adaptado ás medidas das suas linhas, sentido o sol aquecer-lhe timidamente o corpo. Observou o cortejo fúnebre que já se afastava consideravelmente do parque de estacionamento preparando se para entrar nos portões do cemitério em si.
Suspirou provendo-se da energia que precisava para ir adiante com a tarefa que lhe fora confiada.
O receio das consequências daquilo que estava prestes a fazer assombravam- na no medo petrificante, mas o peso das consequências do inverso, de não levar a sua missão a cabo, ainda a amedrontava mais.
Sabia aquilo que devia de fazer, para o bem de todos, e encaminhou-se no trilho de tal, indo determinada com um envelope lacrado na mão em direcção ao cemitério.
A hora tinha chegado.

Sarah Moustafa






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