Dissolvência- Capitulo XIII- Haverá Sempre Sangue, Onde Viveres Tu
Capitulo- XIII
Haverá Sempre Sangue, Onde Viveres Tu
A infância é a velha instância onde se retorna entre
repetições cíclicas do tempo em vida, ou do tempo em morte que se permite viver,
e ampulheta não pára, não verte o que em si tem de conter.
Anos, memórias, odores e sabores, viagens patrocinadas ao
longínquo horizonte ridiculamente próximo.
Quem somos quando deixamos de ser?
Quem não somos e pretendemos esconder?
E o grito que nos alberga a voz calada, existirá alguém, patrono
do eco que nos dê a resposta sem pergunta que nos faça entender?
Alguém que se escultura entre mãos talhadas a quem é
somente, ninguém.
Nada que um rascunho de uma imagem aquém de uma expectativa,
além de um ser humano que se propaga em extras, nada terrestres.
Ela sempre soube que era uma deslumbrante pintura sem
quadro, perdida por cantos flutuantes, onde se rasgava, manchava e pisava
continuamente transportada num coma onde só a essência da beleza a fazia de um
recanto qualquer, continuamente gravitar.
O que sempre esperara era que alguém a agarrasse e
confirma-se, vivencia-se a experiência que se recusava experimentar, queria
ardentemente através dos outros a validação da sua verdade inalcançável, da sua
utopia inquebrável construída em castelos no ar e palácios nos abissais do mar,
e como é lógico, tudo o que viam era a potencialidade encravada de quem azedava
o pote do seu próprio mel.
Sempre quisera ser salva e não a salvação.
Jade entreabriu os olhos aturdidos de uma luz radiosa que a
confundiu de novo, julgando por breves momentos, encontrar-se ainda submersa no
domínio dos sonhos. Lacrimante e ligeiramente ardidos, esfregou-os até
conseguir a sintonia da familiarização, encontrando a surpresa no fundo dos
mesmos. O acto de ver além de olhar despertava-lhe um frémito imenso e,
surpreendeu-se com o seu próprio pensamento, de desejar a posse no trono de um
impulso que frequentemente rejeitava.
Apoiou-se em ambos os braços, permanecendo deitada,
observando o redor do quarto intrigada, não era o mesmo onde tinha acordado na fatídica
noite atrás.
Era leve e amplo, totalmente vazio de mobílias e adornos, as
paredes totalmente caiadas da luminosidade difundida da varanda aberta onde
cortinas brancas esvoaçavam em compasso com o sol dourado que nelas penetravam.
Apercebeu-se rapidamente que não estava em qualquer conceito
de cama e sim disposta num colchão onde a simplicidade do lençol moldado na
pele a abrigavam.
A inconsciência da verdade dos factos não a atormentou desta
vez, sentiu-se estranhamente calma perante as nominais desconhecidas, com a
crescente súbita vontade de respirar o ar que aquela passagem permitia.
Humedeceu os lábios gretados de horas em secura e
levantou-se agarrando no vestido ao seu lado disposto.
Era também ele branco e de um tecido tão leve que nele de
imediato lhe apeteceu fundir.
Pela primeira vez, não levantou questões as suas próprias
interrogações, sentiu a brevidade de um momento em silêncio, onde se permitia
abrir ao acontecimento.
Queria mais que tudo despir-se das roupas sujas e exauridas
que envergava desde o funeral de Gabriel, queria o contraste da morte no preto
com a promessa da vida em branco, desesperadamente, e fê-lo não sentido o pudor
que normalmente carregaria.
Descalça dirigiu-se á varanda que era na verdade um
tranquilo modesto terraço, onde Isaac e uma mesa repleta de iguarias, a
aguardavam na sintonia sempre estranhamente exacta com o momento.
Sentiu-lhe o olhar de bonança que retribuiu com a tímida
capacidade de se aproximar.
- Será o branco a tua cor? - Questionou-lhe seguindo-lhe os
gestos além das palavras. Jade fitou-o longamente desarmada com a
subjectividade das suas questões, permaneceu de pé sentido alguma da confiança
anterior a desvanecer-se entre a visão que ele emanava na luz directa do dia.
- Poderá ser a tua por igual.. - Respondeu-lhe em consonância
com o espectro de cor que ele igualmente vestia.
- O Que poderá ser ou não em relação alguém que não sejas
tu, não importa. - O tom assertivo incendiava-lhe momentaneamente a expressão obliterada
que normalmente o qualificava. - Portanto... Será, Jade, essa... a tua cor?
- Talvez eu não tenha cor alguma. - Encimou desviando o
olhar e começando a sentir-se terrivelmente invadida pela musicalidade desconfortável
daquelas questões.
- Senta-te. - Issac retornou ao ponto da pacificidade que
por igual a inundava de agitação de querer desfazer-lha. De novo afloravam-lhe os
assaltos iminentes de um impulso qualquer que a fizessem agir.
- O que se passou ontem? Que sítio é este? Não era suposto
não sair além das muralhas que revelaste?
Bombardeou-o das questões que sabia que este não ia responder
esperando um qualquer tipo de reacção
- Não era suposto até deixar de ser. - Pausou encarando-lhe
o pulso firme com a mesma perfeita compleição. -Senta-te. - Repetiu
gesticulando a direcção do seu aguardado lugar. Mas ela não queria sentar-se,
sentia os píncaros de uma excitação que não conseguia ou queria controlar,
queria acertar a sua vontade com a energia que lhe brotava. Inspirou fundo e
pressentiu o aroma a maresia que jurava no fundo de si ecoar.
- Estamos perto do mar? - Questionou-lhe ignorando o seu
pedido. Este serviu um copo alto de sumo e levantou-se por igual.
- Estamos perto de onde quiseres estar. - Evadiu-lhe a resposta
com a própria questão, entregando-lhe o copo com o olhar incisivo no seu rosto rejuvenescido.
- Vais ser sempre assim? - Retribui-lhe os olhos intensos
que a devolviam além de uma qualquer descritiva sensação.
- Vou ser sempre diferente daquilo que esperas que seja. Não
vais projectar em mim o espelho em que não te queres olhar.
Jade engoliu em seco a raiva que desejava despejar, como é
que ele se atrevia, agir daquela forma? Como se soubesse algo do que fosse da
sua vida e de quem ela era? Se nem nunca a mesma o soube ou quisera saber. Como
é que ele se atrevia a dizer-lhe o que não queria ouvir?
- Diz-me, quem dirias que és tu?
- Não sou ninguém. Absolutamente ninguém! Nada!
- Óptimo. - Sorriu-lhe perante a emotividade que as palavras
da mesma começavam a entornar.
- Óptimo? -insurgiu-se de imediato- Como podes dizer que é óptimo?
- É bom porque se consideras que não tens identidade podes
funcionar exactamente como esse vestido branco... - Desceu-lhe os olhos até ao
mesmo observando lhe os contornos com naturalidade.
- Tu és demente! - Voltou lhe costas furiosa sobretudo com a
sua incapacidade de se controlar perante um estranho e as provocações que não a
deviam provocar.
- De facto sou, mas sou. Posso adjectivar-me com as palavras
certas na medida da personalidade que escolhi ter. Aceito-os ou rejeito-os
conforme aquilo que considero correcto. E tu que adjectivos sabes serem os
teus?
Jade parou de súbito perante aquelas palavras apertando o
copo entre as mãos redigindo um silêncio que esperava conseguir manter.
- Exacto...Define-me então o que é essa tal de demência?
Issac aproximou-se lentamente enquanto esta permanecia de
costas paralisada perante atitude que queria tomar.
- Define-me o que te apetece fazer neste momento, que
impulsos sentes brotar em ti e não os deixas deflagrar.
Jade sentiu-lhe a proximidade entre o vento e as costas
desnudas que o cabelo ondulante não conseguia tapar. Issac agarrou-lhe a mão
onde ambos agora seguravam o frágil copo.
- Diz a ti própria o que te apetece fazer agora...
Jade sentiu a corrente de adrenalina suplantada entre si e
qualquer mecanismo de inevitabilidade que a fizeram fechar os olhos de imediato,
como quando alguém os fecha antes do exacto segundo, em que o acidente está
prestes acontecer.
O copo estilhaçou se em milhares de fragmentos de si e em orgásmicas,
extasiantes, dores repetidas entre o prazer de se acometer aos mesmos violentos
desejos e impulsos de se deixar abrir ao seu rebuliço.
Observou a mão ensanguentada brilhante e quente dos pedaços
de vidro que a carne lhe rasgava, como se olhasse para a novidade do mundo que
visitava pela primeira vez.
Issac levou-lhe a mão entre o decote do vestido descendo-a
pela imprevisibilidade do seu corpo manchado de vida.
- O branco é só o inicio...O branco é a cor que tu queres
que seja. Estás viva Jade, tu estás aqui.
Tu és.
Sarah Moustafa
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